O médico foi taxativo:
– O calibre da sua aorta ascendente está no limite. Ou você opera ou ela vai romper, e daí é emergência, isso se chegar vivo ao pronto-socorro.
Foi direto, quase cruel, porque a situação era crítica. Era necessário chocar o paciente.
Rafael, o paciente, tinha 42 anos, sem filhos. Não era casado oficialmente, embora morasse com a namorada. Um cara de aspecto jovial, um meninão segundo os amigos.
Muito por conta disso, a descoberta do aneurisma em um exame feito por insistência da companheira bateu como um murro de punho fechado no estômago, um baque.
Se por fora era esse garotão, agora estava sabendo que por dentro era um homem velho com direito a vaga prioritária e fila preferencial, talvez até já aposentado.
Fez o maldito ecocardiograma a contragosto, por pressão da namorada que vinha de uma família hipocondríaca cujo lema era "Quem acha procura a tempo de tratar". Uma linhagem de neuróticos pra quem a frase feita era quase um mantra, uma religião, cujos anciãos batiam os 90 anos há gerações.
E agora ele, um rapaz jovem, atlético, tinha um diagnóstico que mais soava como uma sentença de morte, e não sabia o que fazer com aquilo.
Saiu do consultório sério, respiração curta, travada, muitíssimo preocupado. Mais do que isso, angustiado.
Viu no celular as mensagens da namorada, mas não quis responder.
Não fosse por ela, viveria seus últimos dias sem saber que sua partida estava com data marcada, que tinha sido até antecipada.
Viveria menos, é verdade, mas seria mais feliz nos dias que lhe restavam até o derradeiro, como tinha feito até então.
Sentou em um boteco quebrado perto do consultório médico. Pediu uma dose de cachaça.
– Qualquer uma.
Nunca tinha feito isso, escolhia a dedo os lugares que frequentava, mais ainda o que bebia. Mas naquele fim de tarde melancólico, só conseguia pensar na bomba-relógio que tinha dentro do peito.
Pediu a segunda, a terceira.
A namorada continuava insistindo. Colocou o telefone em modo avião.
Sentia raiva dela, toda a raiva do mundo, e melancolia. Estava acabado, arruinado, liquidado.
Não teria coragem de operar, mas também não conseguiria conviver com a ideia de que poderia cair morto antes de completar o próximo passo.
Olhou para uma foto de família no fundo do balcão daquele bar decadente no Paraíso.
No canto direito do porta-retrato, a 3x4 de um homem na faixa dos 70.
– Seu pai?
– Sim, foi ele quem abriu o bar quando chegou de Portugal nos anos 70. Morreu mês passado, o coração não aguentou a notícia de que o dono do predinho aqui vendeu pra uma incorporadora. Nunca teve problema de saúde, foi de repente, não suportou a notícia. Final do mês a gente fecha.
– Bom, pelo menos seu pai viveu bastante, o bar você reabre em outro lugar. Pior sou eu que acabei de receber a notícia, tenho uma bomba-relógio no peito. É morrer ou operar, mas tô sem coragem.
– Meu chapa, fecha os olhos e entra nessa sala de cirurgia. Não ia morrer se não operasse? Na pior das hipóteses te colocam pra dormir com a anestesia e você não acorda mais, assim, indolor. Quer morte mais tranquila que essa? E o melhor que pode acontecer é você voltar pra vida normal se sair vivo, e acredite, feliz e agradecido como nunca. Tá fácil escolher, não tem dilema.
Foi pro carro, botou o som no máximo. Tinha levado outro choque, desta vez de vida. Estava entusiasmado pra dar a notícia à namorada. O filho do português tinha razão, lógico que ia operar!
Mas antes, na última acelerada, já na avenida de casa, perdeu o controle da direção, e o carro abraçou o poste.
Todos juraram que não havia suportado a notícia.